terça-feira

Sobre livros

Leia um livro exatamente até a metade. Repare que o vento provocado, quando folhea-se as páginas de uma vez, entre os dedos polegar e indicador, varia de acordo com a metade do livro folheada. O vento da parte lida, por algum motivo, difere do vento provocado pela parte a ser lida. Permitirei-me a redundáncia de dizer que livros já lidos e livros a ler, emitem ventos completamente distintos.

Existem outras particularidades do vento das páginas dos livros. Poderíamos entreabrir um livro e passar o dedo polegar da mão esquerda nas páginas, ou seja, de trás para frente. O vento resultante será diverso do vento, quando passa-se o dedo polegar da mão direita, da frente para trás.

Algumas pessoas afirmam que o vento provocado pelo folhear varia de acordo com o gênero e o autor. A brisa de Dostoyevsky, por exemplo, dizem ser inconfundível pela umidade e frio.

Digo isso, pois um livro, além de portador de informação, é, acima de tudo, um objeto. Não entrarei em detalhes quanto ao significado da palavra objeto, reservando a graça abígua dessas divagações aos filósofos. Aterei-me, portanto, ao significado mais corrente no senso comum.

Um objeto, quase sempre, pode ser aproveitado em funções que extrapolam seu destino original. Os livros não são uma excessão, apesar da minha preferência pessoal por usá-los exclusivamente para leitura. Já presenciei casos em que os livros eram utilizados para realizar funções, algumas totalmente degeneradas, diversas de suas atribuições originais, tais como:

apoiar mesas, sofás ou cadeiras; servindo de mesa; portacopos; mata-moscas; papel higiénico; almofada.

Escrevendo sobre este assunto, creio válido relatar uma anedota ocorrida há alguns anos.

Eu estava visitando um grande amigo, cuja casa fica em Miguel Pereira. Ele tem uma excelênte biblioteca e a infelicidade de conviver com muitos mosquitos e moscas daquela região; o que resultou no uso simultáneo de livros: tanto para leitura, quanto para matar os insetos. Numa das muitas tardes agradáveis que passei naquela casa acolhedora, tive a ventura de utilizar e de presenciar alguns dos exemplares do seu acervo em ação. Estavamos discutindo literatura inglesa do início do século XX e, no exato momento em que eu recitava o canto número dois de Pound, uma mosca pousou na parede ao lado, passando pelo nariz do meu amigo. O meu anfitrião arrancou o livro das minhas mãos e, num ímpeto de raiva, aterrisou o volume em cima da criatura. Ao afastar o objeto da parede, revelou-se um estranho rastro de sangue e de restos, asemelhando-se a um ideograma chinês visualisado por mim em um dos poemas de Li Tai Po.

Intrigados pelo resultado, atiramos contra uma outra mosca a coletánea de obras escolhidas de Maiakovsky. O efeito produzido pelo inseto esmagado foi, por assim dizer, construtivista-futurista. Um circulo vermelho na parede branca trespassado por um triângulo negro (restos do mosquito).

Resolvemos realizar um experimento mais amplo e levamos os grandes clássicos da literatura mundial até a varanda, onde havia mais moscas.

As manchas de moscas esmagadas por publicações de Homero em grego revelavam grande complexidade de formas, contronos sugestivos de embarcações ou das ilhas do mar Hegeu, uma das quais praticamente reproduzia o desenho de Creta. Nesse emaranhado de formas e moscas lembro ter tido a impressão de ver algo que lembrou-me de Atena.

Quando esmagamos algumas moscas com traduções da Ilíada, entretanto, as manchas na parede ficaram mais vagas, por assim dizer – europeisadas.

Moscas esmagadas pelo volume de Guerra e Paz assemelhavam-se: à cães de caça, triângulo e olho maçônicos, chapeu do Napoleão, águia de duas cabeças.

Seguimos em frente e repitimos o exercício de matar com os Cantos de Pound. As formas eram mais impressionantes ainda.

Episódios de Ovídio, palavras inteiras em provençal e o castelo de Altaforte nas brumas.

Moscas esmagadas por livros de Dostoievsky, evidentemente, lembravam: machado, roleta e cruz. O Grande Sertão Veredas – chapeu de cangaceiro e o curso do rio São Francisco. Mann – montanhas mágicas, notas de música e pentagramas invertidos. Borges – o Aleph, sem as consequências. E etc.

É lógico que esses desenhos eram muito vagos e nos, na empolgação da experiência, tomavamos emaranhados abstratos de incetos mortos na parede por símbolos, simplesmente porque queríamos ver algo dotado de sentido. Isso é mais uma prova, entretanto, de que o caráter lúdico dos livros e seu conteúdo extrapolam a impressão, o texto.

Um comentário:

H.Aluria disse...

Puta merda! Essa foi a melhor coisa que vc já escreveu. Está perfeito (no sentido limpinho da palavra). :)